quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

O humor na Palavra

"Alegria é negócio sério no céu" (C. S. Lewis)

Introdução

No âmbito cristão, vemos a exposição de que a alegria, ou o hedonismo, uma teoria que afirma ser o prazer o supremo bem da vida humana, não devem ser procurados; quando afirmamos isso no sentido sine Deo - sem Deus - está de certo modo correto, até porque a alegria jamais poderá ser encontrada em tal exclusão, antes, como afirma Salomão em todo livro de Eclesiastes, tudo será pura vaidade, correr atrás do vento (Ec 2.26); assim, tudo o que o homem conseguirá com isso será o tédio. Entretanto, no texto abaixo, veremos aquilo que o Pr. John Piper costuma chamar de o "Hedonismo Cristão"1.

C. S. Lewis, um dos maiores intelectuais do século vinte e, talvez o mais influente escritor cristão de sua época, em sua tão conhecida obra, O Sobrinho do Mago (Primeiro livro da cronologia "As Crônicas de Nárnia"), nos aponta o tema da alegria de uma forma bastante clara e direta quando coloca nas palavras de Aslam, o Leão, que na fábula representa o Cristo, a importância da alegria na vida cristã, dizendo: "Riam sem temor, criaturas. Agora, que perderam a mudez e ganharam o espírito, não são obrigados a manter sempre a gravidade. Pois também o humor, e não só a justiça, mora na palavra"2.

A Exibição do amor e a demonstração da graça

"São muitas, SENHOR, Deus meu, as maravilhas que tens operado e também os teus desígnios para conosco; ninguém há que se possa igualar contigo. Eu quisera anunciá-los e deles falar, mas são mais do que se pode contar." (Sl 40.5).

Para o cristão, todo bem recebido é fruto da misericórdia de Deus agindo de forma a demonstrar Sua graça e bondade para com o homem e para com toda a criação. João, em seu evangelho, nos demonstra isso dizendo que Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu único Filho para morrer na cruz. Logo, a Cruz é o ápice da graça e, portanto, o ápice é a fonte a partir da qual se deriva toda alegria da vida cristã na gratidão do coração perdoado.

O exímio pregador Charles Haddon Spurgeon comentando o mesmo verso cinco do salmo quarenta, diz: "Há obras de Deus em seu povo e para seu povo. Existem suas obras da criação, providência e redenção, e também, suas obras da graça, operados neles por seu Espírito, e em volta     deles     por     sua     providência,     bem     como     para     eles     por     seu     Filho. Essas são obras maravilhosas; maravilhosas em sua variedade, sua ternura, sua adaptação à sua     necessidade;     sua     cooperação     com     meios     externos     e     seu     poder. São o resultado de pensamentos divinos a nosso respeito. Eles vêm não por acaso, não por homens, e sim pela mão de Deus, e essa mão é movida pela vontade dele; e essa vontade pelo  seu  pensamento  com  respeito  a  nós.

Cada misericórdia, mesmo  a  menor  delas, representa algum pensamento bondoso na mente de Deus a nosso respeito. Deus pensa em cada indivíduo de seu povo, e em cada          momento. São inumeráveis. Não podem ser contabilizados. Pudéssemos ver todas as misericórdias de Deus para conosco, e suas obras maravilhosas feitas para nós individualmente seriam incontáveis como a areia, e todas essas misericórdias sem conta  representam infindo número de pensamentos na  mente  e  no  coração de  Deus  para  cada  indivíduo de  seu  povo." 3

A exibição do amor de Deus para com o seu povo eleito se dá de forma maravilhosa, o Seu favor é derramado de tal forma, que até mesmo nas maiores privações, o crente pode se regozijar, e nas coisas cotidianas, ele encontra motivos para adoração.

Igor Miguel, teólogo, pedagogo e mestre em letras, afirma:

"Dizem que G.K. Chesterton começou a considerar seriamente a existência de Deus quando se viu diante de coisas que recebia como que por generosidade e não tinha a quem agradecer. De fato, há coisas que são quase como epifanias, simplesmente nos são  dadas,  surgem  assim  diante  de  nós.  Como  não  considerar  a  gratuidade  de algumas extravagâncias "naturais" como verdadeiros eventos milagrosos: um belo dia, um pássaro cantando, o sorriso ingênuo de uma criança, o encontro entre amantes, a generosidade humana e a criatividade. Como não se maravilhar com a luz do sol refratando em gotículas de orvalho? A gratidão é erguer-se em busca de reconhecimento daquele que é generoso. Aquele que é surpreendido pela graça é como alguém que recebe de um amante secreto flores, e assim, devora-se de expectativas e curiosidade, e pergunta-se "-- Será que é ele?" Pessoas honestas com a beleza buscam um objeto de adoração e reconhecimento. Por outro lado, a ingratidão teria efeitos autodestruidores, pois implicaria na negação não só da graça, mas do agraciador. O ingrato é obtuso, sombrio, cínico e apático. Não consegue discernir danças, cheiros, cores e gestos. Não consegue ver tridimensionalidade no mundo, tudo não passa de formas geométricas planas, previsíveis, explicáveis demais. Por outro lado,  aquele  que  descobre  a  arte  da  gratidão,  aprende  o  contentamento  e  a frugalidade. Consegue dizer graças ou obrigado por cada ato de generosidade, e descobre enfim, que tudo é pura exibição de amor. Afinal, "Deus amou o mundo de tal maneira que DEU..." (Jo.3:16)."4

A certeza de cada indivíduo participante do povo eleito de Deus é que “todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito” (Rm.8.28). Dessa maneira, sua visão de mundo gira em torno da bondade daquele que sendo Deus se fez homem, e assim esse indivíduo, reconhecendo sua posição de escravo, outrora do pecado, agora escravo de Cristo, ainda sem compreender, vê a exibição do amor e a demonstração da graça daquele que na linguagem trinitária de Agostinho 5 é o Amante, o Amado e o Amor, em todos os instantes da vida, no abraço que desfaz a saudade da amada que não se via, ou no momento em que o medo está diante de seus olhos.

A verdadeira alegria cristã e os prazeres

Conforme se tem percebido, a alegria é algo de grande preciosidade na vida cristã, e pode se dizer que se encontra no cerne de toda piedade prática. Filósofos cristãos, como Blaise Pascal, tendo em vista o crescimento acelerado da cultura do entretenimento e da procura desenfreada do prazer, condena a busca idólatra e o exagero do divertimento, quando esse leva o homem a negar o fato de sua miséria e brevidade, em sua condição pecaminosa.
Acertadamente, Pascal coloca:

“Todas as pessoas buscam a felicidade. Não há exceção para isso. Sejam quais forem os meios diferentes que empreguem, todos objetivam esse alvo. A razão de algumas irem à guerra, e de outros a evitarem, é o mesmo desejo em ambos, visto de perspectivas diferentes. A vontade nunca dará o último passo em outra direção. Esse é o motivo de cada ação de todo ser humano, mesmo dos que se enforcam”6

De maneira a deixar claro, Lewis, na maravilhosa obra "Peso de Glória", tratando do gozo humano, fundamentado nas promessas de vida e alegria eterna, afirma:

"O Novo Testamento tem muito a declarar sobre renúncia, mas não da renúncia como um fim em si. Ele diz-nos que devemos negar a nós mesmos e tomar a nossa cruz para poder seguir a Cristo. E quase todas as descrições da recompensa que se seguirá a essa renúncia contêm um apelo ao desejo natural de felicidade. Se hoje a noção de que é errado desejar a nossa felicidade e esperar ansiosamente gozá-la, esconde-se na maioria das mentes, afirmo que ela surgiu em Kant ou nos estóicos, mas não na fé cristã. Na realidade, se considerarmos as promessas pouco modestas de galardão e a espantosa natureza das recompensas prometidas nos evangelhos, diríamos que nosso Senhor  considera      nossos      desejos      não      demasiadamente      grandes, mas demasiadamente pequenos. Somos criaturas divididas, correndo atrás de álcool, sexo e ambições, desprezando a alegria infinita que se nos oferece, como uma criança ignorante que prefere continuar fazendo seus bolinhos de areia numa favela, porque não consegue imaginar o que significa um convite para passar as férias na praia. Contentamo-nos com muito pouco."7

A busca por prazer e alegria é algo vindo da natureza do homem, entretanto para o cristão, essa alegria e prazer se dão a partir de sua união com Cristo, o que permite que esse goze de todos os bens como dádivas das mãos Divinas, tendo o seu prazer no Senhor. Semelhantemente, disse Salomão no livro de Eclesiastes: "Nada há melhor para o homem do que comer, beber e fazer que a sua alma goze o bem do seu trabalho. No entanto, vi também que isso vem da mão de Deus, pois, separado desse, quem pode comer ou quem pode alegrar-se? Porque Deus dá sabedoria, conhecimento e prazer ao homem que lhe agrada" (Ec.2.24-26a).

Aproximo de concluir minhas palavras citando o apóstolo Paulo, que mesmo preso convoca todo povo cristão a alegrar-se: "Alegrai-vos sempre no Senhor; outra vez digo: alegrai-vos."(Fp 4.4).

Também, é de grande importância o comentário do grande teólogo João Calvino, referente a passagem bíblica mencionada por Paulo (Fp 4:4):

"Esta é uma exortação apropriada para aquele momento; porque, como a condição dos santos era excessivamente atribulada, e os perigos os ameaçavam de todos os lados, era possível que estivessem recuando, vencidos pela tristeza ou impaciência. Daí ele os intimar a que, em meio às circunstâncias de hostilidade e perturbação, não obstante se regozijassem no Senhor, como seguramente essas consolações espirituais, por meio das quais o Senhor nos refrigera e nos alegra, devem então, em sua maioria, mostrar sua eficácia quando o mundo inteiro nos tenta até ao desespero. Entretanto, em conexão com as circunstâncias dos tempos, consideremos que eficácia teria havido nessa palavra pronunciada pelos lábios de Paulo, o qual poderia estar enfrentando uma ocasião especial de dor. Pois, se são vítimas de perseguições, ou prisões, ou exílio, ou morte, eis aqui o apóstolo se apresentando como aquele que, em meio às prisões, no próprio calor da perseguição e, enfim, em meio às apreensões da morte, não só se regozija, mas ainda estimula os outros à alegria. Portanto, em resumo - venha o que vier aos crentes, tendo o Senhor ao seu lado, eles têm amplamente suficiente motivo para a alegria.
A repetição da exortação serve para imprimir-lhe maior força: "que isto seja vossa força e estabilidade - regozijar-se no Senhor, e isso também não por apenas um momento, mas de modo que vossa alegria nele seja perpetuada". Porque, inquestionavelmente, ela difere da alegria do mundo nesse aspecto: que sabemos de experiência que a alegria do mundo é decepcionante, frágil e inconstante, e Cristo mesmo declara que é maldita [Lc 6.25]. Logo, somente aquela alegria que não nos é tirada, jamais pode ser vista como alicerçada em Deus."8

Por fim, cito as palavras do pastor da Igreja Esperança, fundador e presidente do Kuyper Hub e diretor de L'Abri Fellowship Brasil, Guilherme de Carvalho, "Só colocando Deus no centro e experimentando prazer na presença de Deus, é que as outras coisas vão chegar para o lugar certo."

_____________________________________

1 - Para maior compreensão do termo utilizado por John Piper, recomenda-se o livro “Plena Satisfação em Deus - Deus glorificado e a alma satisfeita”, publicado pela editora FIEL e disponível gratuitamente para download no site Gesiring God - http://pt.desiringgod.org/resource-library/online-books/the-dangerous-duty-of-delight-sample
2 - C. S. Lewis, O Sobrinho do Mago, pag. 66
4 - Igor Miguel, “Amante Secreto”. Disponível no Link:
5 - Uma clara explicação da visão de Agostinho referente à Trindade pode ser vista no Texto “O Amante, o Amado e o Amor: Deus, segundo o Cristianismo”, escrito pelo pastor Guilherme de Carvalho.  http://www.igrejaesperanca.org.br/component/content/article/3-estudos/78-o-amante-o-amado-e-o-amor-deus- segundo-o-cristianismo
6 - Blaise Pascal, em "Pensamentos"
7 - C. S. Lewis, em "Peso de Glória"
8 - João Calvino, comentário sobre Filipenses 4.4

0 comentários:

Postar um comentário